Por Vitória Leopoldina Gomes Mendes, advogada especialista em direito ambiental e membro da Coalizão Pelos Rios

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Diante de um cenário em que as mudanças climáticas cada vez mais são sentidas, a lei vêm sendo grande aliada na proteção dos sistemas naturais no mundo todo. Meu papel como advogada na Coalizão Pelos Rios, grupo de atuação apartidária composto por um conjunto de organizações, pesquisadores e especialistas engajados na luta pela proteção dos rios brasileiros, começou em 2020, por meio do convite do Gerente da International Rivers no Brasil, Flávio Montiel e, desde então, muitos foram os avanços que o grupo vêm conquistando. Nesta última semana, com o apoio da International Rivers, tive o prazer em representar a Coalizão Pelos Rios e apresentar nossos projetos no XXV ENCOB – Encontro Nacional dos Comitês de Bacias Hidrográficas, realizado em Natal.

O que é o ENCOB?

O ENCOB é um evento realizado pelo Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas desde 1999. O encontro reúne entidades do Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Brasil – SIGREH, representantes das áreas público e privado, organizações não governamentais e da sociedade civil, pesquisadores e muitos outros interessados no tema água. O evento representa uma oportunidade importante para troca de experiências de gestão e governança hídrica de diversas regiões do Brasil, bem como, possibilidade de capacitação técnica, diálogo interinstitucional e comunicação.

Em 2023, a edição teve como temática “Águas do Brasil: Governança, Adaptação e Desenvolvimento”, um título que demonstra um grande interesse entre os comitês brasileiros que ainda está direcionado ao desenvolvimento dos usos múltiplos da água enquanto recurso. Ao mesmo tempo, essa escolha demonstra a já perceptível necessidade de adaptação e revisão dos mecanismos e instrumentos de governança e gestão.

A importância da participação da Coalizão pelos Rios

Essa foi a primeira vez que a Coalizão Pelos Rios esteve em um ENCOB. Desde 2020, nosso grupo vem discutindo formas de proteger os rios brasileiros. Uma das atuações que buscamos é instrumentos  legais que protejam de forma permanente os rios no Brasil. 

Como advogada, vejo que podemos avançar na construção de uma legislação mais protecionista e ecocêntrica.  Embora com uma vasta e complexa quantidade de normas ambientais, o Brasil ainda trata o tema água de forma bastante restrita e direcionada ao desenvolvimento e otimização da exploração de seus usos múltiplos. Não por acaso tratamos de “recursos hídricos”, muito mais do que, de águas. 

Como participante convidada e representante da Coalizão, tive a honra de expor parte de nossas discussões enquanto Coalizão para o público que foi ao evento, trazendo uma perspectiva conservacionista, direcionada a avanços necessários no cenário político e legislativo no Brasil para que os sistemas naturais possam ser melhor protegidos. Mais do que apresentar, estar presente em um local tão essencial para as definições da gestão da água me deram a oportunidades de diálogos que trouxeram maior clareza dos problemas enfrentados pelos comitês na resolução de conflitos, no diálogo com os órgãos ambientais e na implementação de estratégias de gestão. 

O apoio da International Rivers foi fundamental para que a Coalizão de Pelos Rios pudesse alcançar uma importante visibilidade do trabalho que vem realizando e, ao mesmo tempo, propiciar um processo de escuta e acompanhamento do contexto político atual, e dimensionar e mapear alguns dos principais problemas enfrentados pelos comitês de bacias no Brasil.

Dentre os quatro pontos principais que eu observei durante o evento, estão:

1. Comunidades Ribeirinhas: uma luta social que deve ser ouvida

Um dos aspectos mais relevantes resultantes da escuta dos atores que se manifestaram no evento, foi a sensibilização que os povos ribeirinhos geram. Durante o  evento vi a participação direta de algumas comunidades de pescadores, expondo diversos problemas com contaminação, com problemas de saneamento, impactos ambientais de empreendimentos, entre outros problemas que afetam diretamente a segurança alimentar e saúde dessas comunidades.

A ativa participação de seus representantes gerou uma importante sensibilização. Nesse sentido, nossa atuação para estabelecer limites de exploração aos rios brasileiros, deve, necessariamente, dialogar e somar com essas comunidades. Nosso projeto de proteção pelos rios já considera diversas garantias socioambientais para as vulnerabilidades ecológicas às quais essas comunidades são expostas, entretanto, penso que uma maior integração deles na luta política para a promulgação do projeto será de grande importância.

2. Recurso Hídrico, não água

Um ponto que me chamou atenção, foi que, em diversos momentos os palestrantes utilizavam o termo “recurso hídrico” ao invés de “águas”. Em um painel sobre governança, foi exposto que quando falamos em “água” estamos nos referindo ao elemento natural, e por outro lado, quando referenciada como “recurso hídrico”, o significado de acordo com o palestrante é voltado a uma “parcela da água para uso específico”, motivo pelo qual este segundo seria um termo mais adequado. Em minha visão, está é uma escolha política. Nesse caso, eu entendo que um melhor esclarecimento no que consistem sistemas de governança é necessário para uma proteção adequada dos sistemas hídricos brasileiros. Não é possível tratar apenas de “parcela” da água de uso específico, mas ao invés disso, precisamos de todo o corpo hídrico e da cumulação dos impactos de diversos “usos específicos” realizados sob o mesmo rio ou trecho de rio, e com a adequada consideração dos aspectos biológicos e ecológicos, para além da capacidade hídrica.

3. Ausência dos aspectos ecológicos

Mesmo que o evento seja  totalmente destinado a gestão dos recursos hídricos, eu não vi nenhum painel dedicado a questões ecológicas desses sistemas. Não houve destaque, por exemplo, para a questão da qualidade da água, para manutenção dos processos ecológicos dos rios ou para os limites desses sistemas do ponto de vista micro e macro ecológico.

Apenas dois parâmetros foram amplamente discutidos sobre o cenário da gestão do recurso hídrico:segurança hídrica e alimentar. Quando esses parâmetros foram discutidos, eles especificamente adereçaram somente o uso dos rios mas não necessariamente sua conservação. É um pensamento extremamente mecanicista sobre a água. Este ponto precisa ser considerado na c de estratégias pela sociedade civil no contexto político brasileiro. Precisamos pensar estratégias para a inserção no âmbito político, de aspectos ecológicos. O Rio não deve ser pensado apenas como corpo de vazão hídrica, mas sim, como sistema vivo que sustenta uma grande diversidade de processos ecológicos.

4. Autonomia e governança hídrica: um problema chamado dinheiro

Dentre os principais problemas enfrentados pelos comitês de bacia, pude observar que a maioria deles decorre ou no mínimo se relaciona com questões de administração orçamentárias. No Brasil uma grande dificuldade de priorização política pelas ações destinadas a conservação dos sistemas naturais. Nesse sentido, a distribuição do orçamento público não favorece, em regra, a implementação de grande avanços. Isso dificulta que os comitês possam gerar resultados mais expressivos na restauração e proteção de rios e trechos de rio. 

Diante disso, um dos principais caminhos de capitalização dos comitês decorre dos usos mútiplos da água. Em outras palavras, há uma grande luta pelos comitês para que sejam promulgadas leis que viabilizem uma política de cobrança para os usuários da água. Ocorre que, se de um lado há um favorecimento, no sentido de viabilizar a capitalização para ações na bacia hídrica, de outro, quanto mais usuários, mais recursos.  Nesse sentido, cria-se um problema. Pois, se os comitês dependem dos usos múltiplos para a gestão do rio, decorre daí um interesse para que se amplie a exploração dos rios, para que dele resulte maiores recursos. Isso gera um dilema já que, nesta filosofia, para se preservar é necessário capitalizar, mas para se capitalizar demanda-se explorar os rios. 

Da participação do evento, entendo que o caminho para implementação de uma política protecionista para os rios brasileiros ainda é longo. Exigirá que as organizações não governamentais, em especial, realmente fortaleçam sua rede de atuação para criar um sistema forte, com aparato jurídico adequado e capaz de fazer frente ao emaranhado de políticas e soluções pouco efetivas que estão sendo construidas visando tão somente a otimização da exploração, para que aconteça de forma mais efetiva e por mais tempo. 

Percebo que a conciliação dos aspectos ecológicos com as lutas sociais será de grande importância nesse processo. Não só pelos aspectos de clara vinculação na proteção de vulnerabilidades ambientais, mas também por uma sensibilização política necessária para implementação de avanços. Ademais, a manutenção da representação das organização ambientais em eventos como esse é necessária, precisamos acompanhar o que está acontecendo, dialogar, estabelecer novos pontos de vista e, principalmente, expor novos caminhos de soluções mais ecológicas e adequadas diante da crise climática. 

Agradeço imensamente a oportunidade de ter estado presente no evento, dando voz a a missão da Coalizão Pelos Rios: nossa busca pela proteção dos rios no território brasileiro. 


Vitória Leopoldina G. Mendes, advogada especialista em direito ambiental, mestranda da linha de direito internacional e ecológico pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no Brasil e técnica em meio ambiente. Pesquisadora premiada, integrante da Coalizão pelos Rios e da Rede Latinoamericana de Litígios Ecológicos e Climáticos, atualmente é sócia do escritório Irigaray e Associados Advocacia Ambiental. Contato – vitoria.leopoldina@gmail.com / +55 65 99990-2567